segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Exercício Ficcional I

Acaba de entrar alguém no restaurante que me faz lembrar Jorge Luis Borges – o Borges mais do fim da vida; calvo, os cabelos que sobram, brancos e a sombracelha direita arqueada como quem duvida do que vê, ou vê além do que duvida. O terno bem cortado, num tecido meio argentino, mais para encorpado, típico de lugares frios e eventualmente mais elegantes.

Sentou-se à mesa ao lado, pediu uma cerveja sem álcool e uma cesta de pães. Acompanhado por uma senhora distinta, sua esposa. Entabulam, já há alguns minutos, uma conversa bem animada – e que parece íntima – com a serveuse.

Chega a minha comida. Apesar de pouca, parece ótima.

Como um cara tão simpático, com um filho tão antipático como aquele [...] Dessa vez o garçom me atrapalhou e interrompeu a captura. Ele mesmo deve sofrer disso várias e várias vezes. (Aliás, a atividade de garçom requer um desapego enorme da conversa alheia. Ora ouvem frases entrecortadas, outras vezes, os clientes param de falar quando ele se aproxima.)

Sim, a comida, de fato, está ótima. A senhora distinta, esposa do meu suposto Borges, deixa seu olhar perder-se observando uma família com filhos bem pequenos, embora já falantes e um deles corre por todo lado. Me parece um olhar através.

Nesse momento, eu me pergunto para onde vai este texto. Estão postos os elementos da narrativa; posso desenvolver esses personagens e levá-los para um conto. Quase como que os leva para um canto. A ficção me interessa. O garçom mesmo pode ser aproveitado, a deixa está dada. Mas não, esse exercício da ficção, que me exige um certo comprometimento com o personagem, esse olhar por dentro do outro, ainda parece algo inatingível.

Chega, é hora de apagar a luz para dormir. O ar-condicionado parece forte demais, o quarto está gelado, mas meu corpo dói, tamanho cansaço. Têm sido dias duros, de muito trabalho. Decidido; não vou me levantar. Acho que um pouco de frio não vai me fazer nada mal.

Caro leitor, responda você. Estou no restaurante ou no quarto? E, por enquanto, esse exercício ficcional já é alguma coisa.


AGOSTO/2009

Seu azeite pinga, derrama ou você nem gosta de azeite?

Em alguma medida, já sabia que quase tudo que as pessoas fazem - a forma como agem sem pensar, suas escolhas mais banais (suco ou coca?) - dizem algo sobre elas mesmas. Mas, dia desses, me surpreendi com a capacidade reveladora de uma lata de azeite.
Era um domingo bem ensolarado, às vésperas do aniversário de 83 anos da minha avó, quando, como é de costume, nos reunimos para mais um almoço em família. É incrível constatar como cada um realmente desempenha uma espécie de papel já determinado, como se todos fossem primorosamente conduzidos por um excelente diretor de atores. Antes que todos se acomodassem à mesa já se falava da lata de azeite. Pra quê esses furinhos tão apertados, se a lata tem um dispositivo abre-e-fecha. E esse pires todo quebrado da época do seu avô?
Começa o balé de braços, que se cruzam a fim de que todos alcancem as tigelas. Já servidos, é hora de temperar a salada. E a lata de azeite rouba a cena. Tem logo alguém que abre a denúncia. Essa lata não tem mais nada! Vamos abrir uma nova? Me dá, passa aqui! Claro que tem azeite, é só esperar pingar. Credo, esperar pingar não dá! Não sai nada! Ah, isso é ansiedade. Você é muito ansioso! Que nada, eu gosto de azeite de verdade. Ih, esse furinho é para economizar, alguém sussurra. Cara, mais paciência. Eu sou tranqüila, mas não mexe comigo não, que eu cresço. Espera o azeite pingar. Vai pingar. Mas eu quero que derrame. Gosto de arroz nadando no azeite. Azeite é bom, mas muito faz mal para a saúde. Então, traz um vidro de azeite do bom, com a boca bem larga (...).
De repente, percebo que todos estão, na verdade, falando de si através da lata de azeite. O encaixe das reclamações, das defesas, dos conselhos, das preocupações, das frustrações, dos jeitos confirma que estamos em um almoço de domingo. A família está reunida. E todos, de um modo mais, ou menos, tácito esperam de cada um determinada reação. Estes vetores posicionam as pessoas em seus lugares, o que sustenta uma saudável estabilidade dentro dessa instabilidade louca que é a vida de cada um.
E talvez família seja mesmo isso. Esse lugar que nos garante ter para onde voltar. Você vai, vai, vai, vai e volta. É domingo. O almoço tá na mesa, e ainda não trouxeram o vidro de azeite do bom; é o da lata mesmo (o velho Gallo) com os furos apertados e o pires de acrílico quase desmantelado. Embora seja quase impossível ser o mesmo a cada dia, a sensação de voltar é ótima. E (re)conhecer é coisa de família.
A propósito, eu prefiro que o azeite derrame.

AGOSTO/2009