segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Memórias Inventadas




À Sabrina,
por sua sábia tranquilidade infantil




Eu tenho um ermo enorme dentro do olho.
Por motivo do ermo não fui um menino peralta.
 Agora tenho saudade do que não fui.
Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na minha infância.
 Faço outro tipo de peraltagem.

Manoel de Barros.


O nome do meu pai é Roberto Augusto. Quando eu era criança, achava que Augusto era sobrenome. Menina de Paraty, criada na beira d’água com música de Caymmi todo domingo de manhã, também não entendia direito como aquele mar enorme, tão grande que não tinha barco que desse, podia quebrar todo dia no mesmo lugar, e não engolia as casas da beira. Também nunca entendi porque nossos nomes – o meu e de minhas irmãs - começavam todos com a letra “s”. Quando eu estava aprendendo a ler, pensava que toda palavra que começasse em “s” podia ser minha irmã: sol, sapo, sopa, seu, sono, soco. Parei de achar isso, quando, um dia mais tarde, li solavanco e não sabia o que era. Pensei, então, que solavanco não podia ser da família e desisti.


Quando já era uma menina comportada, como se costumava dizer, fui a um baile de carnaval fantasiada de mulher maravilha; fiquei tímida, meio retraída até, quando comecei a brincar com um homem-aranha. Achei bem estranho a mulher maravilha diante de um homem-aranha e nunca entendi porque naquele desenho que tinha todos os super-heróis não tinha o homem-aranha. Nesse dia, quando tirei a bota que fazia parte da fantasia, o quarto ficou cheio de confete. Fiz questão de deixar um rastro até o banheiro.


Toda curiosa, pedi ao meu avô um gole de cerveja. Queria entender o que significava “isso é água que passarinho não bebe”, que ele me dizia toda vez que eu queria beber cerveja com ele. Fiquei achando um bom tempo que passarinho não gostava do gosto amargo. E passei a não entender porque o vô colocava jiló para o Tico comer.

OUTUBRO/2009

domingo, 13 de setembro de 2009

Para aprender, lições.


Durante alguma etapa, o processo de aprendizagem vai impelir o aprendiz a alguns momentos de solidão.


Duas observações, antes de prosseguir. Não estou me referindo especificamente à aprendizagem de conteúdos formais, escolares; a reflexão até se aplica a estes conteúdos, mas vai muito mais além. Outra coisa: em uma era tão conectada (celular, e-mail, sms, msn, trezentos sites de relacionamento, oi tudo bem, vamos?, você tem que ir, tem que fazer, não pode perder!), a palavra solidão assusta. Já fui surpreendida várias vezes por gente que se assusta com fulano, que vez por outra, almoça sozinho. Ou então, de vez em quando alguém não entende muito bem que beltrano desligou o celular, ou demorou uma semana para responder um e-mail pessoal. Permanecer sozinho durante alguns momentos, sem a distração da televisão ou subterfúgio do celular (ícone maior do hipercontato), é, além de fundamental para ouvir e entender o próprio silêncio (o quê em mim cala fundo?, o quê fala muito? nossa estou tão tensa, ou tão tranquila, ou tão agitada ou tão o quê mesmo?), necessário para aprender sobre si.


Voltamos, então, à vaca fria. Com exceção dos casos de puro autodidatismo, a percepção de que precisamos (ou queremos) aprender alguma coisa, geralmente, se dá no contato com os outros, ou com situações externas - que são, na verdade, outros fantasiados de situações. Você tomou um chopp, foi na terapia, na astróloga, na aula de ioga, na aula de canais de distribuição, no cinema, no jogo de futebol, no aniversário da sua tia, conversou com seu chefe, fez uma merda no trabalho, ou então alguém fez algo muito bom, ficou com ele, está namorando com ela, discutiu com um amigo, conversou com o amigo do amigo, leu no jornal e pronto! Acho que eu podia aprender a ser mais, a ser menos, a tentar isso, mudar aquilo. Você se expôs ao conteúdo que quer aprender.


Em todos os casos, se você decidiu que quer aprender aquilo, é porque já está preparado. Do contrário, a oportunidade teria passado diante de você e nem notaria. Tem coisa fácil, é só olhar e adotar, mas tem coisa que requer mais esforço, mais elaboração, alguma repetição e muita força para se sustentar na posição do aprendiz que não abandona sua meta. E é aí que entram os tais momentos de solidão. Esses momentos são fundamentais para (re)avaliar a estratégia de aprendizado, nem que sejam cinco minutos antes de dormir, durante os inevitáveis engarrafamentos, ou na hora do banho. Cada um sabe de si!


Agora mesmo, me encontro diante de um aprendizado que me requer esforço. Estou na fase da repetição (na escola, isso chama dever de casa, homework, chez toi). Já entendi como faz, mas ainda não é natural, tenho que fazer e pensar que estou fazendo, exercitar. Em alguns momentos, inclusive, fico até menos exposta de propósito, respeitando o tempo necessário que meu corpo precisa para aprender a sustentar dois caminhos paralelos, ambos necessários, que só lá na frente vão se encontrar.


Essa fase do exercício, que pode até conter alguns momentos de parceria, deve, necessariamente, ser sustentada internamente, na solidão, mesmo que com a casa cheia, ou na praia com os amigos.


Quando, depois de muito exercício, e alguma elasticidade subjetiva, o aprendizado tiver se transformado em conquista (deixou de ser um gadget e passou a ser standard, tipo câmera fotográfica em celular, para continuar na esfera das metáforas tecnológicas), o aprendiz poderá, novamente, relaxar um pouco e, então, será possível compartilhar a experiência, até, quem sabe, assumir uma postura de maestria.


[CONTINUA]


SETEMBRO/2009

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Cada um é dois







Uma parte de mim pesa, pondera: outra parte delira.
Traduzir-se uma parte na outra parte
- que é uma questão de vida ou morte – será arte?
Traduzir-se, Ferreira Gullar


Tem que revisar o texto e aprovar. Não, não mandei ainda. To esperando a resposta do Jurídico. Não, agora não. É melhor ficar quieta. Marcos, o que você tem, está tão calado? Oi, vó! Não estou dirigindo, não. Até amanhã, Clau! Boa noite, Marcelo! LUD 2749. Obrigada! A tarde de hoje foi tensa mais uma vez na Zona Sul. Nove pessoas foram mantidas reféns em um prédio em Copacabana. Quando a polícia chegou, a situação recrudesceu. Benditas coisas que eu não sei/Os lugares onde não fui/Os gostos que não provei. Quando estavamos indo para Búzios tocou essa música; a Carla adora. Aliás, Carla? Botafogo-Barra, 47 minutos, via Zuzu Angel. Será que a Aninha topa ir ao show? Alface, iogute, granola, biscoito, café. Débito. Oi, tudo! Como foi em Sampa? Encontrou com a Cla? Nossa, que dor-de-cabeça. Tem frango e arroz fresco. Muito trabalho, minha filha. Então somos duas. Elsève. Essa novela está acabando. Google. Uol. Tantas coisas para narrar e ao mesmo tempo tanto para silenciar. A estada em Tel Aviv foi como viver um período sem passado e sem futuro. Radical experiência de presente. Devorei suas palavras, fez muito bem em compartilhá-las comigo. De minha parte devo dizer que preciso aprender a permanecer, acostumar-me com a rotina, todo dia o todo dia. Sinto-me um movimento que não pára nunca. Nove pessoas foram mantidas em cativeiro. A ação da polícia, que durou cerca de 5 horas. Desligar. Yes. Está quase na hora de trocar essa lente. Água. Amanhã, tem ioga. 6h10! Tenho que sair no máximo 6h20. Silencioso. Esqueci de. Depois.

Enquanto dormimos aqui, estamos despertos em outro lado. Dessa forma cada homem é dois homens.

Cadeira amarela na mesa. Pipoca. Não quero ir para a casa do meu pai. Vai sim, vai ser legal. Minha mãe disse que ele vai passar às 15h. Não quero ir, não quero entrar. Mas eu quero a jujuba. Lá tem o pote colorido. Quanto quiser. Não quero ir, mas quero entrar por causa das jujubas. Na hora do intervalo mesmo. Não, não sou do partido. E nenhum dos meus colegas é. Aqui na engenharia o pessoal não que saber disso. Cláudia, você viu a Elis no Campus de Biologia? Não preciso. Ninguém depende de mim. Eu não sabia que tava grávida. De repente, nasceu uma criança prematura. Parecia uma boneca. Acho que era! E ficava no berço sem chorar, sem me pedir nada. Não mamava, não comia nada. Permanecia no berço, quieta, como se esperasse eu me tornar a mãe que ela precisa. E nesse silêncio, nessa cumplicidade, eu passei a gostar dela. A passagem é no dia 20. Paris. Na praia. Encontrei. As pessoas estão todas conectadas por fios brilhantes, azuis e vermelhos. Não sei qual é a diferença. Quente. O mundo está todo conectado, e a rede tem alguns pontos privilegiados, que piscam. Os fios são brilhantes; dentro deles passa uma enorme quantidade de energia, que as pessoas não sabem. As pessoas não imaginam que tudo está ligado. O fluxo das energias é maior que cada pessoa. Ainda mais de cima desse viaduto. Ali tem um emaranhado de fios, um nó. Acho que é uma concentração de energia. Lindo, lindo. Sublime. Ninguém viu isso ainda?


SETEMBRO/2009

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Exercício Ficcional I

Acaba de entrar alguém no restaurante que me faz lembrar Jorge Luis Borges – o Borges mais do fim da vida; calvo, os cabelos que sobram, brancos e a sombracelha direita arqueada como quem duvida do que vê, ou vê além do que duvida. O terno bem cortado, num tecido meio argentino, mais para encorpado, típico de lugares frios e eventualmente mais elegantes.

Sentou-se à mesa ao lado, pediu uma cerveja sem álcool e uma cesta de pães. Acompanhado por uma senhora distinta, sua esposa. Entabulam, já há alguns minutos, uma conversa bem animada – e que parece íntima – com a serveuse.

Chega a minha comida. Apesar de pouca, parece ótima.

Como um cara tão simpático, com um filho tão antipático como aquele [...] Dessa vez o garçom me atrapalhou e interrompeu a captura. Ele mesmo deve sofrer disso várias e várias vezes. (Aliás, a atividade de garçom requer um desapego enorme da conversa alheia. Ora ouvem frases entrecortadas, outras vezes, os clientes param de falar quando ele se aproxima.)

Sim, a comida, de fato, está ótima. A senhora distinta, esposa do meu suposto Borges, deixa seu olhar perder-se observando uma família com filhos bem pequenos, embora já falantes e um deles corre por todo lado. Me parece um olhar através.

Nesse momento, eu me pergunto para onde vai este texto. Estão postos os elementos da narrativa; posso desenvolver esses personagens e levá-los para um conto. Quase como que os leva para um canto. A ficção me interessa. O garçom mesmo pode ser aproveitado, a deixa está dada. Mas não, esse exercício da ficção, que me exige um certo comprometimento com o personagem, esse olhar por dentro do outro, ainda parece algo inatingível.

Chega, é hora de apagar a luz para dormir. O ar-condicionado parece forte demais, o quarto está gelado, mas meu corpo dói, tamanho cansaço. Têm sido dias duros, de muito trabalho. Decidido; não vou me levantar. Acho que um pouco de frio não vai me fazer nada mal.

Caro leitor, responda você. Estou no restaurante ou no quarto? E, por enquanto, esse exercício ficcional já é alguma coisa.


AGOSTO/2009

Seu azeite pinga, derrama ou você nem gosta de azeite?

Em alguma medida, já sabia que quase tudo que as pessoas fazem - a forma como agem sem pensar, suas escolhas mais banais (suco ou coca?) - dizem algo sobre elas mesmas. Mas, dia desses, me surpreendi com a capacidade reveladora de uma lata de azeite.
Era um domingo bem ensolarado, às vésperas do aniversário de 83 anos da minha avó, quando, como é de costume, nos reunimos para mais um almoço em família. É incrível constatar como cada um realmente desempenha uma espécie de papel já determinado, como se todos fossem primorosamente conduzidos por um excelente diretor de atores. Antes que todos se acomodassem à mesa já se falava da lata de azeite. Pra quê esses furinhos tão apertados, se a lata tem um dispositivo abre-e-fecha. E esse pires todo quebrado da época do seu avô?
Começa o balé de braços, que se cruzam a fim de que todos alcancem as tigelas. Já servidos, é hora de temperar a salada. E a lata de azeite rouba a cena. Tem logo alguém que abre a denúncia. Essa lata não tem mais nada! Vamos abrir uma nova? Me dá, passa aqui! Claro que tem azeite, é só esperar pingar. Credo, esperar pingar não dá! Não sai nada! Ah, isso é ansiedade. Você é muito ansioso! Que nada, eu gosto de azeite de verdade. Ih, esse furinho é para economizar, alguém sussurra. Cara, mais paciência. Eu sou tranqüila, mas não mexe comigo não, que eu cresço. Espera o azeite pingar. Vai pingar. Mas eu quero que derrame. Gosto de arroz nadando no azeite. Azeite é bom, mas muito faz mal para a saúde. Então, traz um vidro de azeite do bom, com a boca bem larga (...).
De repente, percebo que todos estão, na verdade, falando de si através da lata de azeite. O encaixe das reclamações, das defesas, dos conselhos, das preocupações, das frustrações, dos jeitos confirma que estamos em um almoço de domingo. A família está reunida. E todos, de um modo mais, ou menos, tácito esperam de cada um determinada reação. Estes vetores posicionam as pessoas em seus lugares, o que sustenta uma saudável estabilidade dentro dessa instabilidade louca que é a vida de cada um.
E talvez família seja mesmo isso. Esse lugar que nos garante ter para onde voltar. Você vai, vai, vai, vai e volta. É domingo. O almoço tá na mesa, e ainda não trouxeram o vidro de azeite do bom; é o da lata mesmo (o velho Gallo) com os furos apertados e o pires de acrílico quase desmantelado. Embora seja quase impossível ser o mesmo a cada dia, a sensação de voltar é ótima. E (re)conhecer é coisa de família.
A propósito, eu prefiro que o azeite derrame.

AGOSTO/2009

quinta-feira, 30 de abril de 2009

"O PULSO AINDA PULSA"

Para Cla,
Meu agradecimento por todo incentivo.
SIMPATIA


Afinidade moral, similitude no sentir e no pensar que aproxima duas ou mais pessoas.

Do latim sympathìa,ae “afinidade, relação, analogia”. Originário do grego sumpátheia,as “participação no sofrimento de outrem, compaixão, simpatia - comunhão de sentimentos ou de impressões”.

[Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa]

O movimento da vida é incessante. O ideal, inclusive, era que a própria palavra explicitasse essa noção a cada vez que fosse pronunciada. Dessa forma, seria mais difícil nos apegarmos à ilusão – e ao conforto – do mesmo. Todo dia a mesma vida. (Isso me faz lembrar uma tribo indígena – sei lá qual?! - que chamava ‘água parada’ de um nome e ‘água em movimento’ de outro. Dentro desse código, a água do rio tinha um nome, a represada dentro de uma bacia tinha outro. Sem ilusões!)
A dinâmica diária do dia e da noite é bastante ilustrativa. Tiremos os relógios da jogada. Olhemos para o céu: ao poucos a luz do sol vai adentrando a escuridão, expandindo-se cada vez mais e mais e, num dado momento, a luz prevalece. Nasce o dia. O mesmo se dá ao anoitecer. A escuridão vai engolindo a luz até que (...) é noite. Amplificando o processo, essa dinâmica ocorre durante as 24 horas do dia. Ao meio-dia inclusive, na máxima luz. A hora sem sombra é mais radiante que a anterior e mais luminosa que a posterior.
O dinamismo é uma condição de vida. Os fluxos não cessam um instante sequer. A todo momento, temos o incrível privilégio do espanto e o benefício da dúvida. Sim, os filhos crescem, os dentes caem, os cabelos também; as relações mudam, aviões chegam e partem, igualzinho ao dinheiro; os amigos se mudam pra longe no dia em que se ganha uma flor; a garganta dói, o cinto aperta, a novela termina. (Daqui a pouco o Maneco já nos dá mais uma Helena.) A babá foi embora e o projeto entregue; a viagem não deu, o casamento acabou; a música tocou, a Bethânia vai fazer um novo show. O marido foi pra São Paulo, a chefe acompanhou.
(...)
Enxergar, a todo instante, o movimento que não pára, inviabilizaria a vida prática. Esta vida não dispensa os relógios: a noite começa às 18h. E é nela que vivemos a maior parte do tempo, absolutamente plasmados na rotina. E é mesmo por estarmos plasmados ao dia de todo dia que gozamos os sobressaltos, as paixões, os encontros, os conflitos. Arrastados pelo fluxo, vamos fazendo - ora pela razão, ora pela emoção, por antipatia ou simpatia - escolhas que nos singularizam e nos impulsionam a seguir enfrente.


ABRIL/2009